quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O teatro e a sociedade pandêmica

 

Foto: Sérgio Azevedo

O teatro sempre foi consciente de suas possibilidades, sempre foi aplicado em escolas, comunidades, prisões, hospitais, em todos os países, das classes mais altas ao povo da rua. Nesses tempos pandêmicos, com o coronavírus ditando regras e impondo isolamentos e readaptações em todos os setores, podemos dizer  que o teatro está "fora de si", saiu de seus lugares tradicionais e está preenchendo um espaço virtual, tateando novas experiências que não estão sendo fáceis neste momento.

O que restou para nós do teatro, nesse momento é praticamente uma voz fragmentada do passado. Nosso teatro prevê aglomerações, onde a plateia se contamina com a energia do ator e vice versa.  Nosso teatro é uma constante troca de afetos, ao vivo, onde sempre discutimos e levamos a cena problemas éticos, emoções, conflitos, e para nós é muito difícil (não impossível) nos adaptarmos as novas formas. Mas não temos escolha. O teatro no seu contexto histórico já sobreviveu a tantas outras "pandemias", revoluções, censuras, ditaduras e catástrofes. O teatro é uma arte milenar, nunca acabou e não acabará!

Se fossemos fazer um paralelo, poderíamos comparar o teatro com a fotografia, saíndo do analógico e entrando para o digital. Uma ruptura profunda para quem trabalhava e se dedicava a arte da fotografia. Para nós essa sensação de curiosidade e medo coletivos, com a curiosidade normal de artista acaba se tornando um obstáculo. Estamos no centro pandêmico da busca, jogamos com tudo, tudo agora é nosso elemento: nossa casa, nosso celular, nossa intimidade. Às vezes parece um tipo de crueldade, mas fundamental para "passarmos de fase". Já vivíamos numa certa prisão, nos adaptando um pouco a condição humana do planeta.  Sempre fomos testados enquanto atores de teatro o difícil equilíbrio entre razão e emoção. Agora mais que nunca. Nós atores, somos mutantes por natureza.  Mas precisamos ter muito cuidado com soluções rápidas feitas de formas impensadas. Muito tem se produzido a este novo formato virtual "in corona vírus"mas de qualidade, bom aí, já é outra discussão. 

O que estamos vivenciando ao meu ver, é uma nova linguagem via lives, plataformas, movimentos frente ao isolamento. Mas não é teatro, é uma adequação artística.  Um oxigênio social, um respiro para tomar fôlego e prosseguirmos. Porque vamos seguir! É o momento de se perguntar "como a tecnologia pode me ajudar?" Essa Arte híbrida é uma extensão do quê? Para quem? O que eu quero com a minha Arte? No que ela será útil nesse momento? Velhas perguntas para montagem de cenas simples que para mim são pertinentes. Os apelos visuais que já eram muitos só aumentaram e como agentes transformadores, creio que não podemos deixarmos dominar. Dominar no sentido de simplesmente seguir o fluxo, sem saber muito bem o que estamos fazendo. Na ânsia de querermos mostrar que estamos vivos, podemos estar morrendo live após live, dia a dia. 

Artaud, que trabalha com a ideia do rito, nos afirma que o teatro é sempre um ato perigoso, um campo de culturas que pesquisa uma linguagem perdida, na qual o mundo está em constante recriação. Porque o teatro é ciência que tem o artista como foco. E o artista deve saber transitar nessa desorganização, porque para ele, não existe diferença entre arte e vida. Estamos num momento de criação em despedaçamento, perdemos algo, mas vamos receber algo novo. É a metamorfose. É a hora de falarmos da dor da nossa existência, dos nossos confinamentos emocionais, nos lançando a um desconhecido. É assim que o teatro atinge o sensorial, o intuitivo, numa experiência muito além da física.

O mundo está sempre sendo criado, zerado, codificado, alarmado. Mais uma vez estamos sendo forçados a reinventar o ritual do teatro, mesmo que temporariamente virtual. Porque o ator, mesmo virtualmente, se souber da sua Arte, tem o poder sobre o espectador. Só que ele não vai mais poder "representar"e sim "experenciar". É importante mais do que nunca estar presente, inteiro, intenso. Talvez o papel do teatro agora seja discutir a "não presença", aquilo que nos foi tirado abruptamente com a chegada do vírus. Qual a dimensão da nossa dor com tudo isso? Somos uma multiplicidade de desejos e temores.  Precisamos estar presentes para resgatar a nós mesmos. 

Quando tudo falta, a voz permanece, e nossa voz agora é o online, ela voa, é o que nos restou temporariamente que ainda grita. Usemos-la com sabedoria e eficácia!

Lisiane Berti