Ela chegou com aquela voz calma de sempre, olhar verde fundo, penetrante porém muito, muito cansada, para não dizer exausta. Fisicamente e mentalmente. Logo nos primeiros exercícios, é como se tudo que estava estancado começasse a verter, mas ainda com certo "controle". Percebi nela muita tristeza, muita dor, dela e do mundo. Como se ela literalmente estivesse carregando o mundo nas costas. Entre um exercício e outro, uma liberação e outra de energia, veio a sua cena. Quando ela nos fala que escolheu a música porque a mesma, não tinha nada a ver com ela, nós rimos. Ela explica, que todo dia colocava para tentar manter a alegria ou mudar o humor indo para o trabalho. Que trabalho? UTI do hospital São Miguel, no meio da pandemia toda. De repente nosso riso foi fechando, o desabar e desabafo da Karol nos fez "murchar", não tinha movimento, tinha um "vômito", a dor do mundo, da pandemia, dos sonhos deixados ao lado para seguir, a força nas mãos e nas lágrimas, a voz rouca embargada. Seu relato foi visceral e doloroso de ouvir. Todos choramos, choramos juntos com ela como se quiséssemos pegá-la no colo e embalar e confortar. Como ela tem feito com todos os familiares dos óbitos de covid. Interferi na cena, pedi algumas coisas, sobretudo com o espelho. A abracei... entre soluços. No outro dia a cena que viria me deixou curiosa. O que sairia de criativo de toda aquela dor?
E ela se cobre com um lençol. Faz da dor poesia. Sem nenhuma palavra, uma cena cheia de movimentos e simbologias, exatamente o oposto de seu desabafo anterior. Ela sai plena, rindo, como se quisesse nos dizer que apesar de tudo ela ainda estava ali, viva, ainda tinha sonhos, não tinha medo de morrer, tinha medo de viver e não realizar o que alma clamava. Que cena linda e verdadeira. Na hora comentei que me veio as personagens das tragédias gregas, pela sua força e visceralidade. Olhar, mãos, gestos e uma voz que nos quebra, que não grita, é suave, tom baixo...
Karol para mim hoje, interpretaria Antígona de Sófocles. O autor coloca em cena uma mulher sem partidários, sem exército, sem nada. Antígona abala a tirania sozinha e isso numa sociedade em que a vida pública era de exclusiva competência masculina. O homem é terrível, dirá o coro. Nossa Karol presenciou por diversas vezes essa frase na íntegra em sua vida pessoal.
A peça foi escrita há mais de 2500 anos, e ainda causa debates e indagações sobre a real motivação da devotada filha de Édipo arriscar a própria vida em nome de um princípio. Uau! Karol arrisca todo dia a sua vida, sua saúde inclusive mental em nome de um princípio: a saúde e o bem estar dos seus pacientes, dos filhos, da sua mãe, e por aí vai... Antígona é uma mulher de coragem, orgulhosa, autoconfiante, que lutava por uma causa: prestar homenagem ao irmão defunto fazendo as libações e jogando um pouco de terra sobre seus restos. Tinha ousadia de liberdade nas atitudes e opiniões, desejava a igualdade entre os povos, buscava um mundo melhor, defensora de uma justiça em um mundo corrupto, onde o poder estava totalmente nas mãos do Rei.
Transmutando a dor em Arte, Karol interpretaria uma Antígona como ninguém, consigo visualizar ela inclusive dando os textos. Antígona foi enterrada viva a mando de Creonte, talvez Karol tenha chego meio submersa, apenas com a cabeça de fora, pedindo socorro, conseguimos creio, fazê-la sair da própria cova, tumba, buraco, UTI, chamem como quiser, para "entubá-la" com boas energias, com amor e teatro. Ah o teatro, que maravilha ter ele como ferramenta para propiciar essas trocas.
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